Porque a Netflix perder a liderança para a Disney não é uma surpresa

Porque a Netflix perder a liderança para a Disney não é uma surpresa


A Netflix perdeu a liderança para a Disney. No primeiro semestre de 2022, a empresa criada em 1997 como uma locadora de DVDs online, que dominou o mercado de streaming por 15 anos, e pode ser considerada a principal responsável pelo surgimento desse mercado, foi superada em número de assinantes pela Disney,  que havia entrado nesse mercado com força, com seu Disney Plus, somente em 2019.

Impressionante? Sem dúvida! Mas não é uma surpresa. E explicaremos a razão:

O modelo de negócio criado pela Netflix, tão inovador e disruptivo que foi o responsável pelo fim das locadoras de vídeo, por colocar em xeque o futuro da televisão tradicional, e que está causando também grandes mudanças no mercado de cinema, trazia, junto com suas forças, uma fraqueza, que torna a Netflix vulnerável. E foi essa fraqueza que a Disney aproveitou, sobre a qual falaremos, e os caminhos que a Netflix pode seguir.

Os consumidores amam o conteúdo, não as plataformas de streaming

Content is King! O conteúdo é rei, é o título de um dos artigos mais famosos de Bill Bates, fundador da Microsoft, escrito em 1996. O trecho que nos interessa, dizia o seguinte:

Conteúdo é o que realmente vai movimentar o dinheiro na Internet, assim como foi na televisão.

Quando a televisão chegou ao mercado, deu início a uma série de negócios diferentes incluindo a produção dos aparelhos em si, mas no longo prazo, quem realmente ganhou dinheiro com as televisões foi quem soube aproveitá-las como um canal para distribuição de informação e entretenimento (conteúdo).

Bill Gates não poderia ter sido mais profético, e mesmo contextualizando que, tecnicamente falando, a Netflix é a marca de streaming com mais assinantes no mundo, 220,67 milhões, e para chegar aos 221 milhões de assinantes que a superam, a Disney tem 3 marcas, Disney Plus, Hulu e ESPN Plus, o que nos chama a atenção é a tendência que se apresenta.

A Netflix perdeu assinantes pela primeira vez em 15 anos, o que acendeu o sinal de alerta, já que isso aconteceu na mesma época em que o mundo passou por uma pandemia e o comportamento dos consumidores mudou, com as pessoas ficando mais tempo em casa, inclusive, trabalhando em home office, o que indicaria que a plataforma deveria, ao menos, manter os assinantes que tinha.

Preço da assinatura influiu na queda?

Os planos de assinatura da Netflix, no Brasil, custam R$25,92, R$39,90, ou R$55,90 mensais, dependendo do número de aparelhos que acessarem. O Disney+, por sua vez, custa no Brasil R$27,90. A Amazon Prime custa a partir de R$14,90, com alguns conteúdos comprados sob demanda, e a HBO Max, entre R$19,90 e R$27,90. A brasileira Globoplay, que como todos sabem, é da Rede Globo, também custa R$ 14.90 por mês.

Embora o  preço possa sim fazer diferença, especialmente em um momento de crise, para um público de mais baixa renda, a questão econômica, sozinha, não explica o que acontece nesse mercado, especialmente quando vemos que o Disney Plus, que não é o serviço mais barato, ganhou 14,4 milhões de assinantes no segundo trimestre de 2022, totalizando 152, 1 milhões chegando em 3 anos a 70% do volume de assinantes que a Netflix levou 15 anos pra conseguir.

Netflix x Disney Plus – Quantidade x qualidade?

Grandes especialistas no assunto, como Guilherme Ravache, consideram que a Netflix errou por ter apostado em quantidade, não em qualidade, como a Disney. É uma opinião embasada, de quem entende muito do assunto, que explica uma parte do problema da perda de liderança da Netflix, mas não todo ele.

Em nossa opinião a questão é que a Netflix tinha uma estratégia de crescimento que deu certo até pouco tempo atrás, mas que continha uma fraqueza que seus concorrentes estão explorando, e que obrigam a pioneira do setor do Streaming a se reinventar.

A maior parte do conteúdo da Netflix pertence a outras empresas

A Netflix tem em seu catálogo filmes, documentários e séries em grande quantidade. Entre esse conteúdo, é possível achar clássicos do cinema como Top Gun, Tubarão (Jaws), Taxi Driver e O Resgate do Soldado Ryan, trazendo atores e diretores consagrados, como Tom Cruise, Steven Spielberg, Robert De Niro e Tom Hanks, além de séries também consagradas pelo público e pela crítica, como Breaking Bad.

Todos esses filmes são sucessos de crítica e público, e os atores e diretores são artistas relevantes, com muita capacidade de atrair público, mesmo se tratando de produções das décadas de 1970, 1980 e 1990, com mais de 40 anos de seu lançamento, portanto, e no caso de Top Gun, com um interesse aumentado pela sequência lançada recentemente, Top Gun -Maverick, que é o filme mais assistido nos cinemas em 2022.

A popularidade desses artistas, e filmes clássicos, é indiscutível. Mas a grande vulnerabilidade da Netflix é que a renovação das licenças desses filmes sempre exigirá um investimento por parte da empresa, o que a deixa nas mãos de um parceiro fornecedor, que por circunstâncias, pode se tornar um concorrente, como aconteceu com a Disney.

É por essa razão que o conteúdo das principais marcas da cultura pop, que são da Disney, ou foram compradas por ela, como Pixar, Marvel e Star Wars dificilmente serão vistos novamente na Netflix.

Antes da Netflix, ninguém acreditava no streaming

Quando a Netflix se propôs a transmitir filmes online, direto para os celulares, e depois as TVs dos consumidores, os estúdios de cinema não tinham muito a perder licenciando filmes para a plataforma, pois esse era um negócio teorizado desde que a internet se popularizou, mas que ninguém tinha conseguido viabilizar antes, por limitações tecnológicas e de estruturação de um modelo de negócios que pudesse ser lucrativo. Era questão de esperar para ver.

Hoje, não é exagero afirmar que o streaming é o negócio mais importante de todo o entretenimento baseado em audiovisual. A Disney criou o Disney Plus porque entendeu que através do streaming  pode chegar até o consumidor sem depender de intermediários, como operadoras de canais de TV a Cabo ou distribuidoras que controlam as salas de cinema. Não faria sentido, então, depender da Netflix.

E não é exagero afirmar que outros estúdios importantes poderiam adotar estratégias semelhantes, colocando o negócio da Netflix em risco.

A Disney tem mais qualidade que a Netflix?

Essa é uma outra afirmação que nós, respeitosamente, discordamos. Da mesma maneira que a Netflix, o Disney Plus também tem vários filmes e animações de baixo orçamento , com atores e diretores desconhecidos, ou em baixa na carreira, só para compor o estoque. Ninguém assinaria um serviço de streaming para ver esse conteúdo, mas é preciso ter algo a oferecer ao cliente quando ele já assistiu a todos os lançamentos importantes.

A Disney, que foi fundada em 16 de outubro de 1923, e está prestes a completar 100 anos produzindo animações e filmes, tem todo esse conteúdo pertencente a ela. Desde os clássicos do Mickey Mouse e produções como Branca de Neve, Cinderela e O Rei Leão, até as séries derivadas e continuações que trazem a marca desses sucessos, que a empresa usava para preencher a  grade de programação de seu canal na TV a cabo, o Disney Chanel.

A Netflix vai se tornar uma empresa de mídia tradicional

Seria injusto acusar a Netflix de algum tipo de miopia, de ficar parada só observando a concorrência agir. Já faz alguns anos que a companhia dirigida por Ted Sarandos  se movimentou no sentido contrário ao da Disney, mas com o mesmo objetivo de integrar operações para não depender unicamente do conteúdo de empresas que podem se tornar suas concorrentes, e investe na produção de um catálogo próprio de filmes e séries.

Recentemente, vendo a concorrência crescer, e ela própria perder assinantes, o que é mais preocupante, a Netflix vem agindo para ganhar fôlego financeiro e principalmente, reorganizar sua estratégia. Além da reestruturar a área de conteúdo, que define as séries e filmes que serão produzidos, a Netflix tomou a polêmica decisão de criar um plano de assinatura com preços mais competitivos, mas que trará publicidade paga.

Muitos consumidores estão reclamando, e têm a sua razão, já que um dos principais benefícios que eles associam ao conceito do streaming, que a própria Netflix ajudou a popularizar, é poderem assistir o que quiserem, quando quiserem, sem serem interrompidos em seu lazer para assistirem publicidade interruptiva.

Independentemente de como os consumidores reagirão quando o novo pacote estiver disponível, não deixa de ser interessante analisar que a Netflix, que até hoje tem sido uma empresa disruptiva, adota uma estratégia bastante conservadora, se tornando uma empresa de mídia tradicional, que produz e veicula conteúdo, e vende publicidade.

O futuro da Netflix

Seria fácil criticar a Netflix por mudar um conceito que ela mesma criou, frustrando alguns consumidores, dizendo que ela está “fazendo tudo errado”. Mas a empresa talvez não tivesse alternativas, visto que para concorrer com o conteúdo da Disney , não basta produzir conteúdo. É preciso ter marcas fortes, que não se constroem da noite para o dia.

E a casa do Mickey tem algumas das marcas mais poderosas da cultura pop. Algumas delas, como Star Wars, são objeto de um verdadeiro culto por parte dos fãs, o que aconteceu também com a Marvel, que com o Universo Cinematográfico Marvel, ou MCU, conseguiu lançar  20 filmes em 10 anos, conseguindo grandes bilheterias em todos eles.

Luke Skywalker, Darth Vader e toda a mitologia criada por George Lucas estrearam nas telas em 1977, e fazem parte do imaginário de uma boa parte da população do Planeta Terra há 45 anos. Os Vingadores são publicados nos quadrinhos desde 1965. A próprio Mickey Mouse foi criado em 1928.  

As únicas marcas da cultura pop capazes de disputar com essas em relevância, como os personagens da DC Comics, Superman, Batman e Mulher-Maravilha, e Harry Potter, que tem oito filmes e alguns spin offs, também não pertencem à Netflix.

A Netflix errou?

A Netflix não errou. Além de alguns filmes que chamaram bastante a atenção do público, como Não Olhe Para Cima, O Irlandês, Dois Papas e Retratos do Mundo, com atores e diretores como Leonardo Di Caprio, Tom Hanks e Martin Scorcese, ela foi atrás das marcas que estavam disponíveis, e  que já traziam sua base de fãs.

Isso explica o investimento em séries como The Witcher, sucesso nos jogos de RPG e nos livros, Mestres do Universo, animação que traz de volta o personagem He Man, e Cobra Kai, que mostra os personagens da franquia Karate Kid trinta anos depois dos filmes originais, vividos pelos mesmos atores.

As iniciativas foram bem-sucedidas, e foi refletida no mercado geek, sendo possível ver alguns fãs com camisetas de Cobra Kai. Mas o grande sucesso da Netflix, candidato a se tornar um fenômeno da cultura pop que continua após o seu tempo de exibição não é uma releitura, mas uma homenagem aos anos oitenta: Stranger Things.

Conteúdo original da Netflix, Stranger Things, criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer , é cheio de referências culturais daquela época, de ET, O Extraterreste (1982), de Steven Spielberg, ao Exterminador do Futuro vivido por Arnold Schwarzenegger. A própria banda Metallica, que tem um público que a acompanha, e lota seus shows, desde os anos oitenta, foi apresentada a uma nova geração de fãs ao fazer parte da trilha sonora da quarta temporada.

Star Wars e Marvel são marcas únicas na cultura pop. Querer comparar qualquer outra com elas é muito arriscado. Mas, tomando por base uma comparação feita entre as tendências de busca de três marcas da Netflix, The Witcher, Cobra Kai e Stranger Things, e as duas da Disney, percebe-se que Stranger Things tem potencial para se tornar um produto cultural bastante durável. E por isso mesmo, rentável.

A resposta fácil para o dilema da Netflix, então, seria que ela precisa de outras marcas tão relevantes quanto Stranger Things. O difícil entretanto, é criar uma.

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